quinta-feira, 17 de junho de 2010

Crónica Luis Freitas Lobo

Um dia, seremos todos heróis
Luís Freitas Lobo (www.expresso.pt)
12:12 Quarta-feira, 16 de Junho de 2010

Estão cada vez mais a preto e branco as recordações dos anos 60. Brilhava, então, Eusébio. Esta referência à 'pantera negra' é, na história do nosso futebol, apenas uma página de um longo trajecto feito no cruzamento de vários modelos e influências. Das ultramarinas, cheiro a África, às brasileiras, novas babilónias. 1966 será, para sempre, mágico. Eusébio, Coluna, Hilário, Vicente... Terá sido a primeira selecção de 'inspiração africana' a brilhar num Mundial.

Os loucos anos 20 formaram futebolisticamente o nosso primeiro mito (vida, futebol e morte). Pepe, lenda de calções pelos joelhos e chuteiras que pareciam umas travessas. Guiou a selecção na sua primeira aventura internacional antes do Mundial, nos Olímpicos de 1928, até aos quartos-de-final. Rapaz franzino, reza a história que executava jogadas com uma rapidez nunca vista. A sua morte, com 23 anos, mais aumentou a lenda. A mãe, por engano, em vez de bicarbonato de sódio, terá colocado potassa na comida. A dose maior foi ingerida por Pepe, que retirou da panela o chouriço, onde o veneno mais se concentrara.

Em termos de treinadores, o nosso futebol sempre esteve avançado no tempo. Cândido de Oliveira, anos 30/50, foi a mão que, com o seu saber, samarra e boina basca nos treinos e jogos, embalou o 'berço'. Viu o ADN do futebolista português, morfológica e fisicamente fraco mas com grande habilidade, e criou um estilo de passe rasteiro e curto. Ou seja: a equipa com a bola, o jogador sem ela. A técnica na táctica.

É impossível dissociar a era dourada do futebol português dos anos 60 do jogador chamado ultramarino, com igualdade de direitos face aos jogadores da 'metrópole'. Entre 57 e 67, chegaram aos nossos clubes 414 jogadores vindos das antigas colónias. Tinham todos a técnica esquiva, típica da raça negra, que, como disse Vítor Santos, "tem na pele a viveza e a sagacidade do homem do mato, para quem o perigo espreita por trás de cada arbusto". Ainda hoje, quando vejo Nani, já nascido em Portugal mas com raízes cabo-verdianas, penso nesta sublime frase. Por isso, ao perder o seu talento para este Mundial, Portugal não perdeu apenas um jogador, perdeu aquele que hoje transmitia mais alegria ao seu jogo e confiança a quem o via. Ronaldo é já um produto da nova mentalidade do jogador português e, claro, do próprio país, ao ponto de hoje já viver muito para lá (e acima) dele, numa galáxia muito distante.

Os últimos jogos revelaram que, sobretudo no processo ofensivo, ainda existe muito para mecanizar. No centro do debate, o 4x3x3 e Liedson, mais adaptado ao 4x4x2, que lhe dá outro avançado para combinar nas desmarcações. Sem ele, fica, muitas vezes, 'desligado' do jogo. A solução está no entendimento dos conceitos colectivos. Mas não é fácil para um jogador que, como disse o seu último treinador, Carvalhal, joga sobretudo por instinto. Isto é, quando lhe perguntam porque fez aquele ou outro movimento, ele responde: "Não sei. Apenas fiz o que me pareceu melhor". O problema é aplicar esse instinto a um sistema que pede outra percepção intuitiva do jogo. É por isso que, para definir um grande jogador, recordo sempre Guardiola: "No início, jogava e acreditava que as coisas aconteciam porque sim. Só me senti jogador quando entendi que elas só sucediam porque há uma lógica. Ou seja, aprendi a decifrar o jogo".

Quantos mais jogadores uma equipa tiver assim, melhor será. A selecção tem alguns. Deco acima de todos. Ele é o motor e coração (criação e organização) de uma equipa que pode dar sentido a uma 'história de futebol' com tantos anos. Como se em cada passe seu, em cada corte do Bruno Alves ou em cada arranque de Ronaldo, estivessem os ecos de tantas eras passadas. Até, um dia, sermos todos heróis.


Clicar para ver o resto do texto

Sem comentários:

Enviar um comentário