quinta-feira, 20 de maio de 2010

Crónica Luis Freitas Lobo - Expresso


O reencontro com a história
Luís Freitas Lobo (www.expresso.pt)
9:00 Quarta-feira, 19 de Maio de 2010

Benfica Campeão. Vitória resgatou o código genético do bom futebol (místico e goleador) do velho Benfica.

Mais difícil do que escrever a história é, a certo ponto do trajecto, ter de a reescrever. Para um clube de futebol, isso também é verdade. Ao longo dos tempos, o Benfica construiu a sua história num caminho de vitórias. Até que, a certo ponto do percurso, a 'odisseia encarnada' chocou com o tempo. A Norte, o futebol conhecera novas expressões de poder, discurso e método, o país mudava e novos adamastores nasciam. O mundo benfiquista teve dificuldade em entender essas mudanças. Órfão das referências do passado que o fizeram grande, enfrentou a travessia do deserto sem uma bússola futebolística que o orientasse na (re)descoberta do seu caminho. A cada passo que dava, as páginas da última noite mágica, em 94, tornavam-se cada vez mais amareladas. 16 anos. Pelo meio, um italiano 'com um frasco de veneno à cintura' ainda acendeu, por instantes, a chama do título, mas durou pouco. Cada jogo do título de 2005 mais parecia um jogo da luta pela descida. Nessa vitória não estava o verdadeiro ADN encarnado.

Ele é feito de um jogo com a baliza nos olhos, o ataque como forma de vida. A cada arranque de um extremo, o estilo de Di Maria que parece ir levantar voo, o adepto levanta-se da cadeira. A cada corte de um defesa-central, a força de Luisão ou a alma de David Luiz, o estádio ergue-se porque sabe que, a seguir, surgirá o ataque. Nesse sentido, 2010 recolocou o futebol encarnado no trilho certo da sua história. Reescreveu-a após longos anos de identidade perdida. Jesus entendeu esse momento da história benfiquista como só um treinador português, pela vivência da nossa realidade e causas da sua mutação, poderia conhecer. Desde o primeiro dia, tocou nos pontos certos do balneário e relvado. Essa capacidade de saber como reescrever a história nasce muito antes do célebre 'mestre da táctica'. No fundo, deu-lhe as bases emocionais (mística) para a construção mais científica (modelo de jogo). Do grito para o relvado, mascando pastilha elástica, ao 4x1x3x2 e o posicionamento cirúrgico nas bolas paradas.

Os 'velhos' jogadores renasceram e os 'novos' acenderam mais luzes em campo. Primeiro a ideia de jogo. Depois, os jogadores para ela. Assim chegaram Javi Garcia, a 'âncora' do meio-campo, aquele '1' solitário que surge na fórmula táctica, Ramires, o 'corre-caminhos" do meio-campo, e Saviola, um 'coelho' em forma de avançado que, metaforicamente, também parece arrastar quem o persegue (os defesas adversários) para um poço no qual depois surge Cardozo para acabar a jogada com um golo. Ao lado deles, Di Maria ganhou asas, David Luiz voltou à sua 'casa táctica' natural no centro da defesa e até Aimar recuperou a respiração táctica e física.

Neste ponto da história tudo parece pacífico. O mais impressionante, porém, em toda esta reinvenção, é o papel do treinador. Em geral, num grande clube, sucede o contrário. Ou seja, é o clube que, reconhecendo-lhe valor ao contratá-lo, dá-lhe asas (a grande oportunidade) para a sua carreira. Aqui, sucedeu quase o inverso. Foi o treinador que levantou o clube. Isto é, tornou-se maior do que a 'estrutura' até se confundir com ela e hoje ser quase impossível imaginar o clube (e a equipa) sem o seu carisma táctico e humano. Este Benfica resgatou o seu código genético mesclando-o com as estratégias de poder que, dentro e fora do relvado, os tempos modernos ergueram. Tudo isto demora tempo a solidificar. Nesse sentido, este título é apenas a primeira página de um novo capítulo que, nas próximas épocas, ainda terá muito para escrever. Até ser história.



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